{Bird Set Free} — MNI para Steve Keller

Na sociedade mortal as pessoas usam o sábado para aliviar o estresse acumulado ao longo da semana. No mundo grego você alivia o estresse todo dia se for uma divindade (isso considerando que divindades chegam a se estressar) ou não alivia o estresse nunca se for um semideus, permanecendo sempre em estado de alerta e treinando o tempo inteiro. A cultura no Acampamento Meio Sangue incorporava aspectos das duas sociedades (mortal e grega), tornando comum o hábito de aliviar o estresse treinando. Eu estava fazendo flexões enquanto um jovem normal passaria seu sábado indo ao shopping e tomando milkshake.

Havia acabado de acordar e sem ao menos lavar o rosto me lancei ao chão para uma sessão rápida de exercícios. Duzentas abdominais, duzentas flexões e duzentos polichinelos me despertaram tão bem quanto um saco de café. Uma camada de suor fazia minha pele brilhar com os reflexos da luz matutina e o vento que corria pelo pátio dos chalés trouxe um frio que arrepiou os pelos da minha nuca. Comi o desjejum as sete, depois fui cumprir com os treinos de hipismo agendados para a manhã e permaneci nos estábulos até a hora do almoço. Estava sujo, com cheiro de cavalo e suor misturados na minha roupa, mas isso não me incomodou porque a vida de semideus envolve esse tipo de situação.

Comi com voracidade colocando de lado a etiqueta e parando apenas para sorver alguns goles de gatorade. "Filhos de Afrodite podem comer com classe, filhos de Hermes comem como podem." justifiquei mentalmente. Durante a tarde me dediquei a uma monótona sessão de canoagem seguida de natação até o sol se por. Enfim tomei um banho quente no Chalé XI e jantei pizza de almondegas no refeitório — um sabor inventado por mim e pouco difundido até então —. Deitei às 22h para estudar um pouco de música mas acabei adormecendo frustrado porque o livreto que peguei na biblioteca do Acampamento dissecava sonetos clássicos enquanto eu queria aprender sobre rock n' roll.




— SENHORAS E SENHORES! STEEEEVE KELLEEEEEEEEER! — Anunciou o locutor, puxando um brado do fundo da garganta e inflamando a massa que lotava o anfiteatro do acampamento. Entre o público estavam os rostos carimbados dos figurões que participaram da Caça a Bandeira e alguns sátiros levantavam cartazes com caracteres em grego antigo. Eu observava tudo aquilo através de uma fresta nas cortinas enquanto deveria me preparar para a performance. Quíron veio me buscar, trazendo minha Gibson Les Paul já pronta para o show. Eu não estava nervoso porque já havia feito isso muitas vezes mas mesmo assim o centauro resolveu passar uma última instrução.
— Steve, você tem que fazer o simples. Eles já te conhecem, já gostar do seu som, não precisa inventar. Vai lá e faz o que você sabe e vai dar tudo certo, cara. — Com esse encorajamento o guerreiro imortal empurrou a guitarra em meus braços e me deu um solavanco para frente, me fazendo atravessar as cortinas.

Passei a correia da guitarra pela cabeça e me posicionei diante do microfone enquanto a plateia gritava de excitação. Uma calma gélida me preencheu por dentro e aos poucos senti que estava dentro de uma bolha de confiança. Tudo que acontecia dentro daquela bolha era de meu conhecimento e nada podia me afetar ali dentro sem que eu soubesse como lidar com a situação. A experiência me dizia que era hora de começar, mas antes precisava cumprimentar os espectadores.
— Boa noite, senhoras e senhores. Eu sou Steve Keller e hoje venho com algumas músicas pra vocês. — Dedilhei algumas notas numa harmonia melancólica enquanto o público se acalmava. — Essa é uma música sobre as correntes do mundo moderno. A prisão em que nos enfiaram quando nos conceberam nesse mundo... Sim, estou falando sobre deuses mesmo. Essa é uma música pra eles. — O dedilhar melancólico foi complementado com o som de contrabaixo e bateria que voluntários do Chalé de Apolo tocavam ao fundo do palco. Dríades ocupavam a posição de backing vocals e murmuravam "Set me free" em uníssono. Com trinta segundos dessa introdução dedilhada a música havia calado a multidão que observava atentamente enquanto meus dedos deslizavam pelas seis cordas de aço, então as dríades se calaram e com minha voz de barítono aveludada eu comecei a cantar.
— SET ME FREE.
— I'M AS TRAPPED AS ONE COULD BE. — Responderam as backing vocals.
— SET ME FREE.
— I'M LOST AND YOU MUST FIND ME.
— SET ME FREE.

E então eu estava no Bosque do Acampamento. Não havia músicos, fãs e nem sequer uma guitarra. Ainda assim a música vinha aos meus ouvidos através dos carvalhos. O dedilhado que outrora eu havia reproduzido na guitarra elétrica agora era tocado noutro instrumento (que soava muito mais clássico e límpido). A voz feminina que cantava era muito melhor treinada que a minha e soava tão bem que não poderia ser natural. Tudo era turvo e não havia como saber com exatidão onde estava a mulher misteriosa nem se me guiasse pelo ouvido, porque o som aparentemente fluía de todas as direções possíveis.
— QUEM ESTÁ AÍ? — Vociferei.
— SET ME FREE... — Respondeu a voz, ainda cantando.




Acordei abruptamente em minha cama. Ao redor todos dormiam e um eu conseguia ouvir duas coisas: a voz melancólica cantando "Set me free" e o coro de roncos dos adormecidos. O despertador indicava uma e meia da manhã, mas não havia mais sono em mim. Sentei-me pensando no que fazer e o que o sonho significava. Decidi que iria até o Bosque para investigar aquela música.

Desculpe o transtorno, preciso falar sobre o inventário:

O Acampamento Meio Sangue é antes de tudo um centro de capacitação para semideuses. Com treinamento e dedicação todos desenvolvem habilidades de heróis gregos como Aquiles e Perseu, embora o meu nível ainda esteja bem longe do deles. Nós aprendemos a usar nossos pontos fortes para desenrolar situações complicadas, como por exemplo, transitar pelo Acampamento após o toque de recolher.

Após me vestir apropriadamente (como se fosse fazer um treino) e encher os bolsos da minha calça de moletom com virotes de besta, peguei Janet e saí sorrateiramente do Chalé XXI. Graças ao astral zombeteiro e a fama das pegadinhas no meu chalé ninguém questionou essa transgressão ao regulamento. "Filhos de Hermes não jogam de acordo com as regras", pensei enquanto atravessava a soleira da porta da frente.

Uma e quarenta da manhã e o acampamento estava imerso num silêncio mórbido. O som de animais noturnos, insetos e de fogo crepitando parecia alcançar uma distância bem maior do que normalmente faria. O farfalhar de asas e sons abruptos de violência aconteciam longe e eu assumi que eram obra das harpias. "Cacete, eu quase me esqueci das harpias". Com passos leves fui me dirigindo com ligeireza até a parte de trás do Chalé XXI porque assim evitaria o campo de visão de qualquer enxerido que resolvesse dar as caras na porta de entrada de seu chalé.

Essa estratégia era possível porque os chalés foram construídos em círculo com as portas principais apontando para o mesmo ponto. Por raciocínio lógico eu imaginei que ninguém observaria os fundos das construções tão tarde, ainda mais tendo a porta principal para vigiar. Nice faltou comigo nesse dia e justo quando estava deixando o círculo dos chalés escutei uma voz.

— O que você pensa que está fazendo? — A voz era estridente e anasalada, irritante demais. Sua portadora era uma garota com aproximadamente doze anos e apesar dela não ter gritado a voz parecia preencher todo o ambiente. — Você deveria estar dormindo, garoto.
— Escuta aqui baixinha, não se mete nos assuntos da diretoria. — Falei num tom baixo e conciso. Torci para que minha expressão preocupada não trair minha tentativa de ludibriar a menina.
— Diretoria? Que diretoria? — Questionou a menina em tom desconfiado.
— Se você não sabe o que é a diretoria é porque você não faz parte da diretoria. — Acenei com a mão enxotando a menina como se fosse um gato vira-lata. — Vai, vai, vai, vai... Volta pra cama. Diretoria não é coisa pra criança.
— Não tem nenhuma diretoria. Nunca ouvi falar de uma diretoria. Você tá tentando fazer uma pegadinha, né? Eu odeio pegadinhas. — A criança gritou para atrair as sentinelas: — OLHA A PEGADINHA. FUJÃO FAZENDO PEGADINHA.

Meu coração disparou e a adrenalina subiu. Comecei a correr como se minha vida dependesse disso partindo primeiro ao norte em direção ao refeitório para depois dobrar ao oeste e alcançar o bosque. A menina me perseguia com proficiência gritando "OLHA A PEGADINHA" tentando atrair as harpias. Se eu não estivesse carregando virotes e besta conseguiria abrir uma distância maior mas infelizmente esse não foi o caso.

O farfalhar de asas começou a se aproximar e logo três harpias se juntaram ao grupo em pique. A música em minha cabeça — que eu estava ouvindo durante o sonho e também ao acordar — começou a ficar mais alta e mais nítida. Comecei a sentir um desespero crescer em mim; um sentimento que transformou a excitação da fuga em medo.

Duas harpias começaram a me assediar com suas garras tentando me capturar enquanto a terceira investia contra a menina delatora. Enquanto eu tentava evitar o contato com elas com movimentos evasivos a menina começou a brigar e agredir sua captora. Logo as duas harpias que me cercavam foram em socorro da companheira agredida. "Criaturas unidas essas harpias". Contra as três a menina não conseguiu revidar e foi erguida aos céus enquanto eu, filho de Hermes fujão, adentrei o Bosque do Acampamento.

Desculpe o transtorno, preciso falar sobre o inventário:

Mapa:

A primeira impressão que tive foi a de que estava completamente sozinho no silêncio do bosque. A segunda impressão foi que algo estava tremendamente errado porque o volume da música aumentava quando me direcionava em determinadas direções e apesar disso não havia ser vivo que pudesse estar reproduzindo o som. Claro que a essa altura eu já havia deduzido que não era obra humana, mas era estranho que não houvesse sinais de terem passado por ali. Até uma criatura mitológica deixa sinais ao passar: um galho partido ali, uma pegada aqui.

A pouca luz que havia no ambiente não me permitia ver nada com clareza de detalhes, embora fosse possível distinguir com os contornos de tudo a minha volta sem dificuldade. O bosque abrigava uma grande gama de vegetação fluorescente e isso servia como guia aos meus pés que marchavam para a clareira. "Eu não sou nenhum filho de Deméter, mas acho que nunca vi planta brilhar em outro lugar... Isso é coisa de ninfa...". Outra forma de orientação naquela madrugada eram os vaga-lumes que transitavam em vôos orbitais ao redor dos troncos das árvores mais altas. Eram dezenas desses insetos e sua luz natural iluminava por acidente o meu caminho.

A melodia ficou mais alta quando fui para o oeste, depois mais alta quando me virei para o norte. A cada metro que avançava conseguia distinguir a direção do som perfeitamente, como uma bússola imaginária até sua origem. Ao atravessar o bosque fui inundado por um sentimento de pertencimento. Não que o bosque fosse o lugar para mim, mas andar por ele carregando uma arma e indo de encontro ao desconhecido me fez perceber que estava agindo como agiriam Aquiles, Perseu e Teseu, os semideuses mais famosos da história.

Por fim, num ponto de acesso à clareira a música atingiu volumes inimagináveis, a ponto de tornar a melodia irritante aos meus ouvidos. Atravessei a linha de árvores para adentrar a clareira, empunhando minha besta de mão armada com um virote para enquadrar a origem daquela tortura (Sim, por mais que a música seja linda, escutar ela por horas começa a se tornar desgastante).

Desculpe o transtorno, preciso falar sobre o inventário:

Mapa:

Já reparou que magia e geometria andam juntas? Eu não me lembro de ter visto alguma representação cenográfica de magia acontecendo que não envolvesse figuras geométricas, como círculos e pentagramas. Ao entrar na clareira um círculo luminoso brotou do chão, como se partículas de ar emitissem luz verde clara, e sua luminosidade potente clareou todo o ambiente.

No centro do círculo luminoso uma beldade observava inquieta. A pele dela era muito pálida, ou talvez fosse esse o efeito de toda aquela luz mística que a rodeava, e seu cabelo tão preto e brilhoso que aquela cena poderia muito bem ser um comercial da L’Oréal. Ela dançava ao ritmo da música e eu soube que estava sendo medido porque consegui sentir (e ver) o movimento dos olhos enquanto a cantora encarava cada ponto do meu corpo, demorando-se um pouco mais na besta que eu empunhava.

Com uma arma na mão e uma cantora tão bela presa num círculo de luz eu me senti um caçador, que enjaula uma ave rara após acertá-la com sua arma. “Besteira, não fui eu que prendi ela aqui.”, mas ainda assim me senti culpado por uma criatura livre ser presa. “Ser filho de Hermes é amar a liberdade!”.

A dança da mulher fez um rodopio e o movimento (somado com a ação do vento) fez com que o vestido colasse em sua pele, evidenciando curvas do corpo que agiram magneticamente na minha atenção. “Eu não sei quem prendeu essa deusa aqui, mas entendo completamente não querer deixar essa gostosa ir embora.”, constatei com um meneio de cabeça (para enfatizar a opinião). Enfim percebi que passei tanto tempo contemplando a aura da cantora que não havia olhado com clareza para ela e para a cena. Vi com meus olhos de músico e não com meus olhos de semideus.

Os olhos grandes e irrequietos ainda me encaravam enquanto os lábios carnudos e brilhantes permaneciam serrados, as mãos finas reproduziam movimentos na dança enquanto uma lira de prata flutuava e emitia notas sem que ninguém a tocasse. “Como deixei isso passar? Pelo amor de Zeus, tenho que ficar focado...”, de repente o meu queixo caiu e a boca escancarou. Lábios carnudos e brilhantes serrados. Se a mulher não estava cantando por que a música permanecia soando em minha cabeça?

Num timing perfeito, digno da majestade da performance, a mulher encerrou sua coreografia abruptamente e de mesma forma se encerraram voz e instrumento.

— Olá, cavalheiro. — cumprimentou a mulher com a voz melodiosa, e em seguida repousou seus olhos dourados nos meus. — Acaso vieste salvar-me?

— Eu não sei nada sobre cavalheiro, pode me chamar de Steve. — Minha vontade era confirmar tudo, carregar a mulher nos braços e que passássemos umas duas semanas como um casal de pombinhos trancados num Chalé nos Alpes Suíços. Infelizmente eu era filho de Hermes e costumamos ser mais malandros que a maioria, por isso resolvi testar o terreno. — Antes desse papo sobre salvamentos e heroísmo eu prefiro que você me explique duas coisas. — Levantei o dedo indicador para indicar a primeira. — Quem é você? — Levantei o dedo médio para indicar a segunda coisa. — Por que você está presa aqui?

Desculpe o transtorno, preciso falar sobre o inventário:

Mapa:

Ninfas são lindas, puras e mágicas. Um semideus como eu, cheio de manha e jogo de cintura não poderia perder oportunidade de conquistar a boa vontade de uma mulher. Eu iria ajudá-la e depois pedir que ela visitasse meus sonhos onde brincaríamos de faz de conta.

Duas perguntas preencheram minha mente quando percebi que ela estava ficando mais fraca: Quem prendeu ela aqui? Como soltá-la? Infelizmente minha luta era contra o relógio e por isso decidi me ater ao essencial. Me aproximei do círculo a fim de examinar as inscrições no chão.

— Reve...fleur. Bom nome. — O que diabos significa Revefleur? — Então, bonequinha, como eu faço pra te soltar daí? De preferência sem que eu morra ou perca um braço no processo.

Os símbolos não significavam nada pra mim mas ainda me atemorizavam. Morrer pra salvar uma ninfa não estava nos meus planos e por isso toda a cautela era necessária para prosseguir. Apalpei os bolsos recheados de virotes e inspecionei a besta para garantir ao menos um disparo caso alguém tentasse me emboscar. Não mantive a besta apontada para Revefleur, mas mantive a empunhadura. Meu alvo agora era o inimigo da ninfa.

Desculpe o transtorno, preciso falar sobre o inventário:

Mapa: