Athenaeum — MNI para Mia Leonheart

Athenaeum

O convívio dentro do Chalé do senhor das tempestades não era ruim, mas Mia se reservava ao direito de permanecer um pouco isolada durante o entardecer. Era filha única e a coletividade não era de todo desconfortável, mas a melhor companhia eram sempre os seus pensamentos, mesmo que enevoados e cinzentos como uma tempestade de verão. O lago de canoagem era silencioso e a brisa marítima soprando sobre os seus fios loiros moldava uma atmosfera propícia ao descanso, onde poderia deitar-se na terra úmida e fitar o firmamento azulado, abarrotado por nuvens albugíneas que pincelavam-se para além do horizonte e caiam por trás das montanhas.  

Por dois anos estivera compenetrada na tarefa de provar a inocência da mãe, mas a irrefutabilidade das provas e a falta de álibis favoráveis à oficial de polícia eram um obstáculo invencível em sua cruzada. Em seus pesadelos mais obscuros, construídos por uma cadeia de ideias que repudiava com veemência e recusava-se a aceitar, a mãe era mesmo culpada. O próprio marido de Isabelle, Benjamin, por vezes parecia convencido de que a esposa era uma criminosa. Isso não somente enfurecia Mia, como também foi responsável por desmanchar a proximidade que tinha com o pai; passara a mentir com frequência para esconder a obsessão pelo caso oficialmente resolvido e a desaparecer por dias sem dar satisfação.

Mas tudo isso parecia ser encarado sob uma perspectiva alternativa dentro do acampamento Meio-Sangue. A realidade era imutável, construiu o mantra e reproduziu em pensamentos, dando ênfase na conjugação do verbo. Semideuses e divindades não eram mitos criados pela humanidade para explicar fenômenos da natureza e inspirar o povo, mas seres vivos, dotados livre arbítrio e portadores de habilidades que desafiavam a lógica mundana. Não obstante, haviam os monstros, criaturas advindas dos piores pesadelos que o homem poderia ter, seres malévolos cuja busca insaciável por comida e caos levavam-os ao encontro dos campeões dos deuses. Em um mundo fantasioso como esse, há de convir que existe uma forma plausível de fazer justiça para a minha mãe, dizia.

Quando a abóbada celeste abrigou a lua em seu zênite e o caldo de estrelas que lhe acompanhavam no breu do cosmos como uma pintura de Van Gogh, a semideusa tomou o rumo da casa grande, beirando a região dos chalés e findando na biblioteca, uma glamorosa construção grega, sustentada por pilares de mármore tão brancos quanto os do chalé de Zeus. Embora obcecada pelo caso da mãe e ávida por conhecer mais a respeito do mundo mágico onde passaria o resto do ano — e talvez o resto da vida, se Quíron estivesse realmente certo —, um acontecimento havia desestabilizado completamente a sua noção de segurança ao passo em que cultivara sementes de dúvida e medo dentro do seu ser.

A Harpia e a declaração de Quíron sobre as criaturas do mundo exterior atormentavam-lhe as noites. O acampamento Meio-Sangue era tão seguro quanto as palavras do centauro faziam parecer, mas Mia era leiga, recém chegada, carecia de uma comprovação sólida do que lhe fora assegurado. Se criaturas tão perigosas quanto os monstros que eram usados para o treinamento dos campistas veteranos resolvessem invadir as fronteiras do acampamento, era sensato acreditar que uma simples membrana mágica protegeria a todos? Não, de maneira nenhuma, era imprescindível que estivesse preparada. Ansiava por uma espada, mas seu arsenal de combate limitava-se a uma única faca, comum aos olhos e ainda mais simplista em seu uso, uma ferramenta que sozinha não seria suficiente para garantir a sua segurança. Precisava conhecer mais sobre o mundo que seu "pai", Zeus, governava.

Como era esperado, os campistas do Acampamento Meio-Sangue interessavam-se mais por comida do que por livros empoeirados. Com exceção de Mia e dos bibliotecários, não havia mais ninguém dentro do prédio. Por um lado era agradável, sempre fora amante do silêncio e companheira fiel da quietude, mas por outro sentia-se observada, inquieta enquanto caminhava por fileiras de livros que se levantavam sobre o manto de escuridão que se estabelecera dentro do recinto. A biblioteca organizava-se em ordem alfabética e pequenas plaquinhas nas estantes guiaram-na até as escadas para um outro andar, onde estavam os livros cujos autores tinham nomes que iniciavam com a letra K.

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Mia galgou silenciosamente no ébrio corredor que nascera a partir da escadaria, alumiada por chamas mornas que ardiam nos braseiros metálicos que pendiam a partir do teto. O lumo pálido pincelara com cores quentes a escuridão negrura, dando especial enfoque aos olhos azulados, tempestuosos e radiantes da filha de Zeus, que tão ávidos pareciam com a busca pelo conhecimento que examinavam minuciosamente as fileiras de livros sobre as inúmeras estantes, ao encalço de uma específica enciclopédia. A biblioteca do acampamento era surpreendentemente organizada para uma instituição privada que abrigava centenas de adolescentes rebeldes e assustadoramente poderosos. Seus livros enfileiravam-se em ordem alfabética, de autores e obras, dando margem a uma pesquisa mais específica e satisfatória, ao passo que aligeirava o processo de busca de exemplares específicos.

Os olhos rapinos da semideusa fitavam as capas dos livros da sessão "O", dois ou três corredores depois da escadaria, com a mesma intensidade que uma águia encarava a sua presa, mas não se iludiam em deixar de perceber um ordenamento contrário ao que estava acostumada. Seu primeiro palpite foi que um outro campista havia solicitado o empréstimo de um livro, mas um exame mais apurado constatou que a ordem com que os livros se dispunham não parecera ter diminuído, mas aumentado, como se um outro exemplar tivesse sido adicionado a coleção. — Esse aqui faz boas análises sobre os monstros e suas características marcantes. Será que o acampamento conseguiu material novo? — Ponderou, tirando um dos livros da estante para análise, mas devolvendo-o imediatamente após certificar-se que não era o que procurava.


Quase adentrando à sessão "P", imerso na escuridão mais profunda da estante, descansava aquele curioso exemplar.  — O Livro dos Monstros... — Permitiu-se ler, aproximando a capa do livro do braseiro mais próximo para que pudesse enxergar com mais clareza. Concluiu, por sua pouca familiaridade com o mesmo desde suas visitas anteriores, que tratava-se do livro recém chegado. Estava curiosa, instigada pelo seu conteúdo, e decidiu que a enciclopédia de monstros ficaria para um outro momento.

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— S.W Brandeur, filho de Zeus... um meio irmão? — Mia pontuou retoricamente, arqueando uma sobrancelha em um amalgama de espanto e curiosidade. A semideusa esmiuçou nas memórias mais recentes o sobrenome em destaque, na busca pelo portador do livro, mas poucos momentos de convívio tivera com os rapazes e raparigas do chalé um, e por tanto, menos esforço ainda tivera em anotar mentalmente os seus vários nomes. Fosse aquele um sobrenome conhecido entre os filhos de Zeus dentro do acampamento ou não, somente saberia com uma dose de esforço que não estava disposta a despender naquele específico momento.

Mia acomodou-se em uma mesa de madeira no segundo piso, onde sentiu-se confortável e em posse de boa iluminação para a leitura. Minotauros, dracaenae, cães infernais e uma infinidade de outras criaturas monstruosas, avaliadas em seu grau de periculosidade e estudadas tão minuciosamente que em certos momentos a imaginação da garota transportava-a para um combate mortal contra as criaturas mágicas. A explicação abarcava conhecimento profundo acerca das criaturas, tais como seus pontos fortes e fracos, estratégias de combate e armas vantajosas para um encontro contra as mesmas. Era quase como se os deuses, sabendo do seu pouco conhecimento acerca do mundo mitológico, tivessem lhe concedido uma benção.

Mas se assim o fosse, certamente não viria de graça.

Suas passadas delongadas através das páginas findaram em uma última página, completamente em branco com exceção do título. — Duplo? Mas não tem... — Seu protesto foi imediatamente interrompido quando apercebeu-se de uma pequena frase no cabeçalho da página. Leu atentamente e concomitante a que sua expressão transmutou-se em espanto, cada palavra do livro pareceu arder como se fosse imbuída pelo calor do sol. Mia soltou o livro na mesa em reflexo pouco antes de um clarão engolir a ela e ao resto do salão. Em protesto ao resplandor, seus braços cobririam a vista, bloqueando os raios de luz, mas na medida em que os ditos se enfraqueciam e a coragem para olhar sem comprometer a visão renascia das cinzas, arriscou uma olhada.

— Que infernos é você? — Questionou, espantada. A hiperatividade, comum a todos os semideuses como Quíron lhe explicara a não muito tempo atrás, fez com que seus neurônios trabalhassem com o triplo da efetividade. Temerosa pelo advento de uma segunda Mia Leonheart, ela esforçou-se para levantar da cadeira se empurrando para trás, mas o estrondo do objeto estatelando-se no chão ecoou através da biblioteca. A mão destra correu para bem próximo da bainha da faca, que descansava do lado esquerdo da cintura, mas não mostraria-se agressiva até que realmente o tivesse de fazer. — Vamos, responda! — Ordenou, desconfortavelmente.

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Cadenciando os batimentos cardíacos na mesma passada da calmaria corriqueira, a filha de Zeus permanecia vigilante ante à criatura metamórfica, mas não permitiria que o descontrole emocional lhe comprometesse o raciocínio e a resposta aos estímulos do ambiente circundante. Quíron certamente não viria ao seu socorro. Sua pessoa era recheada com uma infinidade de fraquezas que os monstros não tardariam em explorar em sua vantagem. Mia compreendeu isso em pouco menos de dois minutos depois que venceu a Harpia, na fronteira do acampamento Meio-Sangue.

No entanto, apesar da realidade ser um fato, a fraqueza sempre foi uma condição passageira e mutável. Não precisava de Quíron, de uma barreira mágica ou da caridade dos deuses. Precisava de si mesma, por mais irônico que a frase soasse diante de uma réplica vilanesca. Cercada por semideuses que almejavam a grandeza dos heróis gregos, a filha de Zeus queria apenas continuar respirando. E assim o faria, por meio de treinamentos árduos e infindáveis, por meio de noites despendidas sobre os livros, lapidando a sua perícia, se esforçando, fazendo por si mesma o que nenhum outro faria.


A semideusa das madeixas douradas entreviu o advento da réplica e, num instante preciso, seu corpo deslocaria-se para a direita com celeridade, para além do alcance da lâmina, ao passo em que a mão livre se ergueria a fim de tomar para si o pulso armado da criatura. Era uma probabilidade arriscada, mas tomou como verdadeiro o princípio de que se o monstro se parecia com ela, teria também a mesma força. É perigoso, pensou, mas não ousou hesitar. Concomitantemente ao ato defensivo, a destra em posse da faca avançaria em um arco ofensivo a partir do abdômen da criatura até a altura do ombro oposto — HYAAAH! — bradou, convencida de que a chave para o sucesso seria um confronto direto.

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Numa passada de movimento precipitada por parte da verdadeira filha de Zeus, a lâmina delgada sussurrou aos ventos e atingiu em cheio o seu alvo. Em uma amalgama de medo e dor, Mia cambaleou, sentindo a ardência e o enrigecer dos músculos na altura do ombro. Por um momento, considerou fugir, abandonar não somente o monstro, mas também o acampamento Meio-Sangue e tudo sobre aquele mundo. Era o desejo moldado pela covardia, pelo instinto humano de autopreservação. Seu semblante fechou-se mediante àquele desejo, incrédula sobre si própria, determinando a si mesma, mais uma vez, que não se entregaria a mediocridade.

E naquele momento que transitou sobre os seus olhos como um ínfimo instante, apercebeu-se de uma moderada quantidade de detalhes acerca da criatura. Não era assim tão parecida com a sua pessoa; a faca dominada pela mão oposta indicava uma oposição a sua postura, tal como a expressão facial, mais sombria do que Mia já fora em seus dias mais tempestuosos. A criatura não era uma outra personificação de si mesma, como seus pensamentos aos poucos concluíam, mas sim um monstro terrível que ousara fantasiar-se da sua pessoa sem que tivesse trilhado o seu caminho.

Era imperdoável.

Naquele momento de tensão, o mais sensato seria retirar-se da curta distância, tomando fôlego e recuperando-se do ferimento aberto em seu braço. Não precisava ser versada em nenhuma arte medicinal para que soubesse que o sangue derramando-se por sobre as suas roupas e vertendo em quantidade significativa a partir do ferimento seria prejudicial a longo prazo. Na iminência da ascensão luminosa de sua sósia, Mia virou-se na direção contrária, partindo em retirada estratégica, ao mesmo tempo em que ironicamente mimetizava a tentativa de sua antagonista, carregando o corpo de modo que partir ao seu encalço era altamente improvável. Deste modo, dobraria alguns corredores e descansaria apoiada em uma prateleira.

Sua ação seguinte, caso lograsse êxito em sua ocultação momentânea em meio as prateleiras da biblioteca, seria passar a faca para a mão esquerda e convocar mesmo que uma quantidade moderada de eletricidade na destra, utilizando-a para cauterizar a ferida. Era uma manobra arriscada, detinha pouco domínio acerca dos seus poderes, mas se não o fizesse, morreria de qualquer outro modo.

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Um relâmpago estridente rugiu e permeou o recinto com lumo infindável. Quando desvaneceu por inteiro, o ferimento no ombro estava selado. Um sorriso frágil enfeitou os lábios da filha de Zeus; inebriada em felicidade por permanecer bem, por um momento se esqueceu da ardência no ombro, fruto da recente cauterização. Mia permaneceu em paz por um attossegundo antes que chispas elétricas saltassem no ar e um estrondo bombardeasse os seus ouvidos violentamente. Folhas brancas saltaram no vento e os batimentos cardíacos novamente se acentuaram. Na medida em que ouvira o estrondo, ela acometeu.

Seu senso de direção era unicamente o estrondo recente — de forma a usa-lo como uma forma eficaz de reencontrar-se com a sua duplicata —, mas seus passos, céleres como os de um guepardo ao encalço da presa, se movimentaram juntamente ao estrondo, deslizando a faca de uma mão para a outra, de forma que a empunhasse novamente com a dominante. Em um movimento súbito, valendo-se da provável surpresa de um ataque ocorrido ao fim da investida antagônica, a verdadeira filha do senhor das tempestades acometeu, diminuindo o espaço entre a sua pessoa e o alvo ao passo em que a faca viajava como uma serpente dando bote, em semiarcos e estocadas tão velozes que, se subestimados, certamente dilacerariam o tórax da duplicata.

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